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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O TEMPO EM QUE OS CANTARES DO ALENTEJO ENTRAM PELAS IGREJAS DENTRO│ARTIGO PUBLICADO NO DIÁRIO DO ALENTEJO EM 6 JANEIRO 2012



Quer que cante ou quer que reze?
A 6 de janeiro, a tradição cristã atribui a visita dos reis Magos a Jesus Cristo, que havia nascido dias antes. É também hoje que termina o chamado Ciclo de Doze Dias, que Michel Giacometti, etnólogo da Córsega e que estudou os cantares alentejanos, documentou na década de 1970 na sua série televisiva “Povo Que Canta”. Um período ao longo do qual se canta ao Menino, as Janeiras e aos Reis, e que culmina no dia de hoje, 6 de janeiro, Dia de Reis.

Texto Marco Monteiro Cândido

O cimo da estrada termina na igreja de Santa Bárbara de Padrões, freguesia do concelho de Castro Verde. No adro do templo, homens e mulheres, principalmente homens, juntam-se em torno dos madeiros que ardem e dão os tons laranjas à noite. Os rostos, alumiados pela luz da criação, da origem dos tempos, retesam-se e mexem-se devido ao frio, tentando enganá-lo. Os chapéus, as samarras, os capotes, as pelicas e os cajados compõem o cenário. E os lenços, os habituais lenços, que aconchegam as gargantas de onde, daí a pouco, vai brotar o cantar aos Reis, mas também ao Menino e as Janeiras.

Na rua, para disfarçar o frio, bebe-se e come-se. As crianças correm e brincam e a brancura da igreja torna-se mais alva na noite escura. No interior, está quase cheia. Mais cheia do que em dias de missa. De paredes irregulares, teto de madeira, os bancos estão preenchidos de novos e velhos. Silenciosamente, em fila, o primeiro grupo coral dirige-se ao altar. São os Camponeses de Valvargo, compenetrados e ordeiros, carregando nos ombros a tradição de um Alentejo inteiro e, na voz, a dureza da origem dessa tradição. Na assistência, os olhos fechados compadecem-se com o ouvir do canto, uma das tradições natalícias mais profundamente alentejanas. Os braços cruzados, apoiados nos cajados, dão o balanço e o equilíbrio aos timbres secos e fortes que soam na noite fria de inverno. Começou o Cantar ao Menino, Janeiras e Reis.

Por estes dias, muitos são os locais espalhados por terras do Baixo Alentejo que dedicam as suas noites a cantar e a ouvir os Reis. Este tipo de cantar aparece, por esta altura do ano, associado aos cantares ao Menino e às Janeiras, começando na altura do Natal e prolongando-se, muitas vezes, até meados de janeiro. E se a tradição se mantém acesa por estes dias, como as candeias que saíam à rua para alumiar o caminho dos que cantavam pelas ruas antigamente, essa mesma tradição teve que ser reinventada, tal como as candeias, que só estão presentes por motivos icónicos e ornamentais. O tocador de viola campaniça, dinamizador e ensaiador de diversos grupos corais, Pedro Mestre, é da opinião que estes tipos de cantares estão a perder-se um pouco ao longo dos tempos, desde os tempos em que eram transmitidos “à roda do lume”. “Tradição é transmissão e, hoje, este tipo de cantes não se transmite. E são poucos os grupos corais que os cantam, da quadra que vai do Natal até aos Reis”. Esta realidade é um reflexo das origens, onde este tipo de cantares era feito de forma espontânea, “por homens e mulheres, moços e moças que saíam para a rua”, refere Pedro Mestre. “Não havia grupos corais, sequer. Nos últimos anos é que tem sido hábito os grupos corais fazerem concertos de cante ao Menino, Janeiras e Reis”.

José Francisco Colaço, anfitrião do “Património”, programa emblemático da Rádio Castrense, aponta para esse mesmo sentido, o de que os grupos corais sempre estiveram alheados deste tipo de cantos, sendo um fenómeno relativamente recente. “Havia até alguma recusa em participar neste tipo de cantares. Só muito recentemente é que os grupos corais, pouco a pouco, começaram a entrar nesta lógica dos cantares tradicionais”.

Os cantares de antigamente Em meados do século passado, bem antes dos grupos corais adotarem estes cantares tradicionais como parte dos seus repertórios e das suas identidades, quase sempre na lógica tripartida que é apresentada atualmente, Menino, Janeiras e Reis, estas manifestações musicais surgiam de forma espontânea, por populares que se juntavam ao acaso, cantando de porta em porta, como refere José Francisco Colaço. “No entanto, há que distinguir duas situações: o Cante ao Menino, completamente religioso, que só seria cantado nas igrejas, em ambientes mais litúrgicos e completamente afastado do mundo pagão onde se desenrolavam os outros cantares, as Janeiras e os Reis”.

Se o cantar ao Menino acontecia em celebrações religiosas, na quadra do Natal, muitas vezes na própria Missa do Galo, as Janeiras e os Reis eram cantados, normalmente, na rua, após essa data, entre o final de ano e o Dia de Reis. Aliás, as Janeiras nunca se cantavam dentro das igrejas “até pelas características das próprias quadras que eram cantadas, as chamadas chacotas, que tinham que ver com o desejo de sorte e saúde para os donos da casa, com a situação de pobreza, de miséria, de fome e de frio que as pessoas passavam”. Era um cantar que visava, única e exclusivamente, o arranjar de algumas ofertas, desde o bocado de pão à linguiça, passando pelo queijo ou um bocado de presunto. “O que viesse ia para um saco comum que depois era repartido pelo grupo de cantadores. Por isso, Cante ao Menino, cante religioso. Cante às Janeiras e Reis, cantar espontâneo e de rua”.

Pedro Mestre, apesar de não ter vivido esses tempos, relembra os hábitos de outrora por ouvir contar, onde nas Janeiras e nos Reis, nas friezas de princípio de inverno, os grupos andavam de rua em rua, batendo de porta em porta, procurando reconfortar alma e estômago. “Um grupo que saía para cantar, antes de cantar, batia a uma porta e perguntava: quer que cante ou que reze? E do lado de dentro respondiam para cantar, para rezar ou não respondiam. Mas era hábito, nessas noites, os lavradores, que davam a esmola, mandarem ficar alguém de sentinela. Até me lembro de ouvir dizer que no monte tal mandou-se fazer uma amassadura de pão porque é noite de Janeiras”. Apesar de serem manifestações para as pessoas arranjarem alguma coisa que reconfortasse o estômago, bem vazio a maior parte das vezes tal era a miséria dos trabalhadores rurais, Pedro Mestre aponta ainda um outro cenário, onde outros interesses apareciam. “Havia ainda aqueles mais sacrificados, que ganhavam as esmolas e depois, no dia seguinte, faziam um leilão no adro da igreja e o lucro revertia para a Igreja. Na freguesia de São João dos Caldeireiros, em Mértola, muitos dizem que isso acontecia no tempo mais antigo”.

O ressurgimento dos últimos anos Pedro Mestre, ele que também é ensaiador de grupos corais, como os Cardadores, as Papoilas ou a Academia Sénior de Serpa, sublinha que a assimilação do repertório típico do Ciclo dos Doze Dias, apresentado por Giacometti em 1971/1972, é, também ela, uma forma de manter os grupos ativos durante o período de inverno. “Os grupos corais no inverno acabavam por ficar um bocadinho parados, porque não tinham repertório e não tinham concertos. Estas iniciativas fizeram com que os grupos reavivassem a memória sobre estes cantes, procurassem e recolhessem os temas”. E é nesse trabalho de recolha e estudo do repertório do cancioneiro popular alentejano que Pedro Mestre tem­- ‑se deparado com a particularidade dos cantares fazerem-se de formas diferentes entre terras, sejam elas próximas ou afastadas. O próprio dá um exemplo num típico tema dos Reis. “Apesar de se encontrar a mesma letra em todos, nos ‘Três Cavalheiros’ é onde se percebe melhor, porque aquilo é um romance e, do princípio ao fim, as palavras são as mesmas. Mas tem dezenas de melodias. Cada terra que canta os Reis, canta com uma melodia própria”. A explicação das variadas formas que chegaram até hoje relaciona-se com a transmissão que faz a tradição.”As pessoas iam ouvindo, trauteando essas melodias e assim é que iam modificando as várias versões. Hoje em dia, os grupos corais conhecem esses temas e trabalham-nos de forma diferente”.

A maneira como passaram a ser encarados estes “cantos tradicionais”, como refere José Francisco Colaço, é que foi preponderante para o seu ressurgimento nos últimos anos através dos grupos corais. O acolhimento tardio por parte dos grupos corais aconteceu porque estes nasceram, inicialmente, para o cante, aponta o fundador do grupo das Camponesas de Castro Verde. “Esses cantares tradicionais nada têm a ver com o cante alentejano, com as ditas modas. E os grupos recusavam tudo o que tivesse uma génese mais próxima dos bailes e dos cantares à campaniça”. Mas então, o que mudou com o passar dos anos? “Pouco a pouco foi-se introduzindo no pensamento que a cultura é um todo, que deve ser preservada, porque as pessoas, dos grupos espontâneos de outrora, foram desaparecendo e a única forma de preservar esta tradição seria através dos grupos corais. Mesmo assim, nem todos os grupos cantam estes cantares tradicionais”.

Atualmente, para além do Menino, o cantar das Janeiras e dos Reis também já se faz nas igrejas, tendo saído do palco primordial, as ruas. E, como na igreja de Santa Bárbara de Padrões, pode ouvir-se alguém cantar: “Toda esta noite aqui ando/Com os pés pela geada/A barriga vem vazia/E a talega não traz nada”. Mesmo que antes não perguntem se é para cantar ou para rezar.

Cantar os Reis por estes dias
 
Por todo o distrito de Beja muitos são os locais onde se canta aos Reis neste final de semana. Hoje, em Brinches, festejam-se os Reis, depois de ontem se terem cantado em Serpa, com um desfile pelas ruas. Também em Castro Verde, na Basílica Real, pelas 21 e 30 horas há um Concerto de Reis. No concelho vizinho de Ourique decorre o cantar das Janeiras e Reis na igreja Paroquial de Santana da Serra a partir das 21 horas. Amanhã, dia 7, é a vez da igreja Paroquial do Santíssimo Salvador, pelas 21 horas, encerrando uma semana dedicada ao Cante Alentejano – Janeiras e Reis.

Almodôvar recebe também, amanhã, pelas 21 horas, na igreja Matriz, o Cante ao Menino. Em Figueira dos Cavaleiros, Ferreira do Alentejo, a Associação Grupo Coral Os Rurais organiza o Cante dos Reis, às 19 horas, na igreja Matriz. A freguesia de Ervidel, em Aljustrel, recebe o Cantar aos Reis no próximo domingo, dia 8, pelas 17 horas, no centro cultural local, com as participações dos grupos As Margens do Roxo e Flores da Primavera.

E, no momento em que a candidatura do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco está a ser preparada, a Confraria do Cante Alentejano, a Casa do Alentejo e a Associação MODA promovem o primeiro encontro de grupos corais no próximo dia 8, na Casa do Alentejo, em Lisboa. Uma oportunidade para se discutir a importância da candidatura, o ponto de situação da mesma e a relevância da participação dos grupos corais na sua razão de ser e desenvolvimento. MMC